Artigo – CRISE ECONÔMICA, INCERTEZAS E RUPTURAS – Por Leila Bijos

A análise do sistema econômico tornou-se o foco principal do contexto pospandemia de Covid-19. Os agentes econômicos propagam o discurso de uma perspectiva positiva de retomada do crescimento, com as exportações brasileiras alcançando recordes comerciais de 35,8% em relação ao ano anterior, de acordo com a Confederação Nacional da Indústria, superando o recorde de US$ 481,6 bilhões registrado em 2011.  As projeções econômicas ressaltam que o Brasil voltará ao top das 10 maiores economias mundiais, mas não especificam a data. Estima-se que o país enfrentará momentos de imprevisibilidade na retomada do crescimento, num horizonte temporal 2022-2024, com reflexos que demandam perspectivas e vivências diferenciadas para os diversos tipos de setores, considerando questões globais.

Procura-se responder a várias questões, que incluem o Brasil lidar com os desafios sociais e econômicos gerados pela pandemia, o Auxílio Brasil, e as eleições de 2022. As seguintes dimensões devem ser consideradas: economia; sociedade e demografia; saúde e meio ambiente; geopolítica e relações internacionais; e político-institucional. Insta trabalhar com o levantamento das tendências, incertezas e rupturas, considerando-se a questão orientadora e seus aspectos fundamentais. Dentre as sementes lançadas nos últimos dois anos enumeram-se a resposta do Sistema Único de Saúde (SUS), a mobilização popular para receber as doses da vacina contra a Covid-19, e a volta gradual das atividades econômicas e sociais.

Dentre os pontos negativos, a crise financeira mundial afetou a indústria, a agropecuária, o mercado interno e as exportações. Há segmentos estanques como o acordo União Europeia e Mercosul, paralisado em decorrência de atritos com a Alemanha e França, relacionamentos crivados de críticas com os países sul-americanos, e a ausência de uma pauta amigável e diplomática. As negociações com a China e o mundo árabe foram impactadas por críticas, promessas inadequadas, decisões intempestivas, o que impediu que o comércio multilateral avançasse a um nível de trocas comerciais pujantes, visitas técnicas, novos acordos acadêmicos e avanços em transferência de tecnologia para a inovação. Augura-se um crescimento acelerado do uso de atividades produtivas em nível de inteligência artificial e de sistemas automatizados até o final de 2022. A comunidade acadêmica sonha com o aumento dos investimentos em ciência, tecnologia e inovação no Brasil. Cenários prospectivos demandam canalizar investimentos em serviços personalizados e com maior qualidade, bem como enxugar o orçamento, reduzir gastos com a adoção do home office e com a digitalização de processos, este será o grande desafio da indústria brasileira.

A atual recuperação pós-Covid-19, é lenta, afeta a economia global, apresenta marcas indeléveis causadas pelo isolamento social e fechamento do comércio. Percebe-se claramente o aumento da violência urbana, o desemprego, a fome e a pobreza endêmica. Caminhar pelas ruas é um exercício de reflexão, com tantos cidadãos sem teto, que perambulam desorientados à espera de um prato de comida. Relatório oficial da ONU divulgado em 7 de julho de 2022, aponta que entre 702 e 828 milhões de pessoas foram afetadas pela fome em 2021. Depois de permanecer quase inalterado desde 2015, o número cresceu cerca de 150 milhões desde o início da pandemia. O resultado reflete desigualdades entre e dentro dos países na recuperação econômica depois dos impactos da Covid-19. Segundo a entidade, mesmo com a melhora de cenário, os países continuam longe de acabar com a insegurança alimentar. As projeções são de que cerca de 670 milhões de pessoas ainda enfrentarão a fome em 2030, o que seria equivalente a 8% da população mundial. No que tange ao Brasil, segundo o relatório, mais de 60 milhões de brasileiros enfrentaram algum tipo de insegurança alimentar — praticamente 3 em cada 10 habitantes do paísO número representa um índice de cerca de 10% do registrado nos anos de 2014 e 2016.

O impacto deste progressivo retorno se faz sentir na saúde mental do mundo. Uma das principais explicações para esse aumento é o estresse sem precedentes causado pelo isolamento social decorrente da pandemia, restrições à capacidade das pessoas de trabalhar, ausência de apoio dos entes queridos, violências domiciliares perpetradas contra mulheres e membros vulneráveis da família. Solidão, medo de se infectar, sofrimento e morte de entes queridos, luto e preocupações financeiras também foram citados como estressores que levam à ansiedade e à depressão. Entre os profissionais de saúde, a exaustão tem sido um importante gatilho para o pensamento suicida.

O momento atual impõe uma reconsideração do conceito de desenvolvimento, que deveria inspirar “novas perspectivas de cooperação”, libertando-o do caráter dogmático e absolutista no qual fica preso. Se a palavra desenvolvimento e seu conteúdo foram uma invenção do Ocidente, essa crise que se prenuncia longa, portadora de conflitos sociais, e inerte em relação ao meio ambiente, pode se tornar uma oportunidade para refletir sobre nossa concepção de crescimento, valorizando o patrimônio sapiencial de muitos povos latino-americanos baseado no princípio do “bem viver”, no intuito de reinterpretar a vida pessoal, social e do ecossistema à luz de uma expectativa da felicidade menos mercantil e mais cósmica. A organização da sociedade dentro de padrões que garantem a produção e o consumo a ritmos sempre mais elevados leva as pessoas a viver em função do mercado, mutilando dimensões existenciais que qualificam a experiência humana.

Um estudo sobre a sociedade dos Estados Unidos revelou que não existe correlação entre renda e bem-estar; ao contrário, a pesquisa demonstra que a felicidade do americano médio vai decrescendo à medida que o poder aquisitivo aumenta, atingindo o nível mais baixo do Ocidente. O paradoxo no qual deparamos pode ser bem explicado pelo fato que na sociedade do consumo, como Baudrillard bem destacou, o indivíduo (homo consumans) renuncia à suas próprias originalidade e especificidade em nome da “produção industrial das diferenças. A grande operação da economia de mercado foi a de transformar “a substância natural e humana da sociedade em mercadorias…; é evidente que a desagregação provocada por um dispositivo desse tipo deve quebrar as relações humanas e ameaçar de destruição o habitat natural do homem” (Polanyi, 1983, p. 70). Se a sociedade foi convertida em simples apêndice do sistema econômico, a aplicação da lógica do livre mercado à cultura da auto realização, das relações humanas e da organização política leva naturalmente a uma grande contradição dentro do capitalismo, a da anarquia e da ausência de limites (Bell, 1996). No momento no qual o alto grau de desenvolvimento tecnológico e os grandes desafios da época impõem responsabilidade individual e decisões coletivas em prol do bem comum, a ideologia dominante continua enfatizando o sucesso individual e o sistema competitivo. No entanto, a suprema necessidade da humanidade é cooperação e reciprocidade.

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Leila Bijos

Pós-Doutora em Sociologia e Criminologia pela Saint Mary’s University, Halifax, Nova Scotia, Canadá. Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (CEPPAC/UnB). Professora Visitante do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais (PPGCPRI), Universidade Federal da Paraíba (2020). Coordenadora de Pesquisa do Centro de Estudos Estratégicos (CEEEx), Núcleo de Estudos Prospectivos (NEP), Ministério do Exército (2019-2020). Aigner-Rollet-Guest Professor at Karl-Franzens University of Graz, Áustria Centro Europeu de Formação e Investigação dos Direitos Humanos e Democracia, Uni-Graz (2018/2019). Pesquisadora Visitante no International Multiculturalism Centre, Baku, Azerbaijão (2018). Professora do Mestrado Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (2000-2017). Oficial de Programa do PNUD (1985-1999). Professora do Programa de Pós-Graduação em Propriedade Intelectual Transferência de Tecnologia para a Inovação – PROFNIT, Universidade de Brasília (UnB), CDT, Brasília, DF desde 2016.