Entrevista com Abhay K .100 Grandes Poemas da Índia , uma antologia de grandes poemas do mundo para a Índia.

Entrevista com Abhay K., por Marina Della Valle e Francesca Cricelli

Abhay K é Poeta e Diplomata Indiano e exerce sua função na Embaixada da India no Brasil.

  1. 100 Grandes Poemas da Índia veio depois de trazer CAPITALS, uma antologia de grandes poemas do mundo para a Índia. Poderia nos dizer como esses projetos se desenvolveram? Como eles estão relacionados um com o outro?

CAPITALS nasceu da minha busca por sentir e experimentar o mundo através dos olhos dos poetas e da minha curiosidade de entender como as capitais do mundo, aparentemente diferentes, estão relacionadas umas com as outras. Publiquei e lancei o livro na Índia com a idéia de compartilhar a experiência dos poetas do mundo com outros indianos. Agora eu gostaria de fazer o caminho inverso, mostrar a Índia ao mundo através dos olhos dos poetas indianos. E, assim, a idéia de 100 Grandes Poemas nasceu, uma antologia que mostra a rica tradição da poesia da Índia que abrange mais de 3000 anos, escrita em mais de 27 línguas indianas. Passei um ano explorando, compilando e editando poemas indianos selecionados que me comoveram de alguma maneira ou de outra, me fizeram pensar e me questionar com seus sons, imagens e rasas (sabores). Eu acho que esses poemas, que eu chamo de grandes poemas indianos, atraem qualquer pessoa interessada na Índia. Para tornar esses poemas amplamente disponíveis, estou trabalhando em suas traduções em vários idiomas. Até agora, temos 100 Grandes Poemas da Índia traduzidos em irlandês e português. As traduções em alemão, grego e espanhol estão em andamento. Então, o que acontece é que estou levando a poesia indiana ao mundo depois de ter trazido poemas de todo o mundo para a Índia.

  1. Em um país tão diverso como a Índia, com tantas línguas e culturas diferentes, como foi o processo de escolha desses 100 poemas?

A Índia é realmente um país muito diverso e a tarefa de editar essa antologia é intimidadora. No entanto, parece que eu estava me preparando inconscientemente desde alguns anos. Lembro-me de, em 2013, entrar em uma livraria em Gangtok, a capital do estado de Sikkim, no nordeste da Índia, e comprar todos os livros de poesia à venda. O dono da livraria ficou emocionado porque ninguém tocava naqueles livros havia anos. Ele exclamou: “você é um poeta!”. Na época, eu não sabia que esses livros de Gangtok e outros que colecionara ao longo dos anos seriam um dos arquivos para meu projeto de compilação de grandes poemas indianos. No final de 2016, me peguei a ler quase todas as antologias da poesia indiana publicadas nas principais línguas indianas. Eu escolhi a dedo os versos que senti que eram ótimos. Então revisitei os poemas selecionados para ver se eles ainda me comoviam após repetidas leituras. Gabriel Rosenstock, poeta e tradutor irlandês, também recomendou alguns poemas, que gostei e decidi incluir. Ele traduziu simultaneamente os poemas selecionados para o irlandês. Para acomodar o maior número possível de línguas e vozes, o volume tem um poema por poeta.

  1. 100 Great Indian Poems também faz questão de dar voz a grupos minoritários, como o LGBT e o dalit. Como esse aspecto da edição foi organizado?

É verdade. A Índia é tanto socialmente quanto lingüísticamente diversificada. Tentei incluir poemas de quase todos os grupos minoritários na Índia, incluindo tribal, dalit, LGBT entre outros. Não foi difícil encontrar grandes poemas escritos por poetas pertencentes a essas comunidades. Alguns dos melhores poetas indianos, de fato, são provenientes das comunidades minoritárias da Índia.

Ao editar uma antologia que representa a poesia indiana, contemporânea, medieval ou antiga, é preciso ter sensibilidade para as existentes dinâmicas de classe, casta e gênero. Aproveitei o fato de que a poesia é uma plataforma para questionar as injustiças e desigualdades constituídas no tecido da nossa sociedade. É importante ouvir as vozes de protesto que vêm de várias hierarquias sociais e econômicas da Índia. Se você assistiu a Caminho das Índias, uma popular novela brasileira, você provavelmente sabe do que estou falando. Nesta antologia, você ouvirá vozes de todas as camadas da sociedade indiana – um dalit e um brâmane que ocupam pólos opostos na hierarquia de castas, um catador de lixo (Kabariwala) à margem da sociedade, um mago que acentua o caráter exótico da Índia, um indiano tradicional imerso em antigos rituais, e outro globalizado, transpondo barreiras continentais e assim por diante.

  1. Como os tradutores foram escolhidos para a edição brasileira?

Minha cara colega e poeta indiana Shelly Bhoil, que mora em São Paulo, mostrou um grande interesse em lançar uma edição brasileira de 100 Grandes Poemas da Índia. Ela fez a maior parte do duro trabalho de trazer tradutores de renome – John Milton, Luci Collin, Divanize Carboneiri, Claudia Martins, Vitor Alevato de Amaral, Virna Teixera, Joana Mascarenhas e Giselle Wolkoff – para o projeto. Além disso, tenho trabalhado com alguns tradutores brasileiros desde a minha chegada ao Brasil há cerca de dois anos. Eu trouxe a bordo a poeta e diplomata brasileira Ana Paula Arendt, que traduziu alguns dos meus poemas; Wellington Bujoka, outro poeta-diplomata responsável pela promoção da língua portuguesa no Itamaraty, Ministério das Relações Exteriores do Brasil; Roberto Medina, Professor Associado da Universidade de Brasília; Beatriz Santos, uma jovem tradutora de grande potencial e estudante da Universidade de Brasília e Francesca Cricelli, a quem conheci no Festival Internacional de Poesia da Nicarágua. Eu queria ter o maior número possível de tradutores para que cada um pusesse seu talento em ação nesta singular antologia… nesta antologia singular da poesia indiana em tradução. Além disso, era importante que os tradutores de 100 Poemas da Grande Índia fossem escritores experientes e fluentes em inglês e português. Alguns de nossos tradutores, como Claudia, são tradutores profissionais em tempo integral, enquanto a maioria, incluindo John, Gisele e Vitor, lecionam em cursos acadêmicos em tradução. Divanize tem experiência em tradução de literatura indiana, como o famoso clássico indiano Hind Swaraj. Joana, uma escritora de Goa, vive em São Paulo desde 1958, e tem um conhecimento transcultural. Algumas tradutoras como Virna, que também é neurologista, e Luci, são poetas famosas com uma compreensão lúcida das nuances poéticas.

  1. O poeta e tradutor brasileiro Haroldo de Campos costumava dizer que um poeta-tradutor deveria tentar abordar um poema como se fosse uma partitura musical e identificar a teia de som e sentido do poema antes de traduzi-lo. Ele exortava os tradutores a fazerem isso especialmente com poemas que pareciam intraduzíveis, como poemas fônicos, que poderiam cair na “categoria de melopeia” como sugerido por Ezra Pound. Haroldo chamava esse processo de tradução de “transcriação”. O que você acha disso? Existe algum poema em sua seleção que você diria que foi necessário “tanscriar”? Se sim, você poderia nos dar alguns exemplos?

Concordo plenamente com Haroldo de Campos. Um tradutor deve sentir a melodia, o humor e o rasa (sabor) de um poema antes de se aventurar na sua tradução. Mas a transcriação tem um significado diferente para mim. Eu a vejo como um ato de transportar um poema de um idioma para outro, mantendo intacta a essência do poema, e isso é feito não traduzindo palavra por palavra, mas traduzindo a metalinguagem e o senso geral do poema para outro idioma. Tomo como exemplo um poema de Kalidasa transcriado por mim do sânscrito para o inglês. Veja a primeira estrofe desse poema, intitulado “A Descrição do Prazer de Uma”,

Shiva taught her how to make love

in their bed; Parvati offered him back

herself, full of grace of a young woman,

like a present one gives to one’s guru

 

No entanto, caso fosse traduzido, palavra por palavra, o resultado seria algo assim:

 

To his disciple Shiva taught lessons,

of making love in the bed,

skilled young woman offered

herself like a gift to one’s guru

 

Nesse exemplo, tomo liberdade criativa enquanto transcrio o poema. Eu também busco em minha transcriação usar uma linguagem contemporânea para soar mais familiar ao leitor contemporâneo. Eu acredito que todos os clássicos deveriam ser traduzidos ou transcriados a cada 20 anos para torná-los acessíveis para a geração atual.

 

  1. O inglês foi usado como linguagem comum para todos os tradutores neste projeto? Você acha que os tradutores poderiam se beneficiar de um contato direto com os autores contemporâneos, indo além do uso do inglês como língua veicular para a tradução?

 

Eu diria sim para ambas as perguntas. Como editor de 100 Grandes Poemas da Índia, estou ciente de que é uma tradução indireta porque apenas um pequeno número de poemas nesta edição foi originalmente escrito em inglês e a maioria é de outras línguas indianas. No entanto, isso não parece exercer qualquer influência negativa sobre este projeto por vários motivos. Os tradutores que traduziram esses poemas para o inglês conhecem bem as línguas originais e a cultura indiana. Portanto, usar suas traduções em inglês para produzir versões em português e em outras línguas parece natural para mim. Além disso, eu me dispus a conectar os tradutores da edição portuguesa aos poetas indianos vivos e seus tradutores ingleses. Mas essa necessidade não surgiu, pois consegui responder satisfatoriamente às dúvidas dos tradutores, que versavam principalmente sobre a diferença entre as línguas originais e o português, tais como o gênero das palavras ou o significado de palavras na língua indiana nos poemas em inglês. Por esse motivo, esta edição em português também é suplementada com um glossário de palavras indianas.De qualquer forma, uma situação ideal seria aquela em que a versão traduzida não é removida duas vezes do original. Por isso, gostaria de encorajar os brasileiros a aprender línguas indianas.

 

  1. Como poeta e como tradutor, como sua própria escrita é influenciada pelo seu trabalho como tradutor?

 

Tenho aprendido muito traduzindo poemas do hindi e do sânscrito para o inglês e vice-versa. O fato de um poema poder ser traduzido de várias maneiras também me ensinou a escrever um poema de maneiras diferentes. Escrever também é uma maneira de traduzir imagens mentais e música em palavras. Aprendi bastante com a leitura de centenas de poemas escritos nas várias línguas da Índia, e produzidos em diferentes épocas, e cenários sociais e culturais, e estou certo de que minha própria escrita de poesia melhorou no processo.

 

  1. Com base em seu conhecimento e leitura da poesia brasileira, existem, na poesia contemporânea brasileira e indiana, temas e preocupações em comum?

 

Li poemas de Castro Alves, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecilia Meireles, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, entre outros poetas contemporâneos brasileiros, e encontro correntes e motivações universais em suas poesias. Por exemplo, outro dia, eu li o poema “Antologia” de Manuel Bandeira que trata do sofrimento humano e de como o autor gostaria que ele acabasse rapidamente. Em ‘E Agora, José?’ Carlos Drummond de Andrade faz perguntas universais. Eu li os Poemas Escritos Na India de Cecilia Meireles e percebi que o prazer que tenho ao escrever poemas sobre lugares e personalidades é muito semelhante ao dela. O foco no amor e na perda nas obras de Vinicius de Moraes encontrará algum dia um fio condutor em obras de muitos poetas indianos. Os poemas de Castro Alves sobre o sofrimento dos escravos e “The Black Man”, de Ved Pal Deep, que aparece nesta antologia, provavelmente soarão semelhantes e inspirarão sentimentos similares.

 

  1. Quais são seus planos agora, você está trabalhando em algum novo projeto que possa aproximar os caminhos da poesia brasileira e indiana?

 

Tenho um projeto ambicioso em mente: reunir uma coleção de poemas sobre a América Latina, incluindo o Brasil, que eu gosto de chamar de Os Alfabetos da América Latina. Eu tenho escrito poemas sobre lugares importantes, personalidades, monumentos da região, e tenho também traduzido poemas de autores brasileiros contemporâneos para o inglês desde que cheguei ao Brasil há dois anos. É uma espécie de resposta à coleção de poemas que Cecilia Meireles escreveu na Índia (Poemas Escritos na India) e à coleção de Octavio Paz (que era embaixador do México na Índia) In Light of India.

Também é um desejo meu contribuir para a perpetuação do legado do poeta Rabindranath Tagore, que morou na Argentina, onde ficou hospedado brevemente na casa de Victoria Ocampo. Além disso, há dois anos tenho organizado o evento mensal Chá Com Letras em Brasília e agora também em São Paulo. Com o objetivo de reavivar a conexão poética entre a Índia e o Brasil, também organizei o Festival de Literatura Indiana em três cidades do Brasil em 2017.,Espero que mais escritores brasileiros sigam os passos de Cecilia Meireles, viajem para a Índia e escrevam sobre ela.

  1. Aparentemente, você traduziu alguns dos poemas para o inglês em parceria com outros tradutores. Poderia nos contar um pouco sobre esse processo? Quais são os prós e os contras? Em quais circunstâncias você recomendaria uma tradução em parceria?

 

Sim, isso mesmo. Em casos assim, o primeiro tradutor traduz o poema do idioma de origem e o segundo tradutor aperfeiçoa a tradução tanto quanto for possível. No final, ambos tradutores trabalhando em conjunto alcançam um resultado satisfatório. Eu acho que isso realmente funciona se os tradutores confiarem um no outro e se sentirem confortáveis trabalhando juntos, pois o processo envolve a remoção de qualquer coisa que desagrade um dos tradutores. Um dos dois pode facilmente se ofender caso ambos não sejam francos um com o outro. Eu recomendaria traduções em parceria quando o primeiro tradutor tem um bom conhecimento da língua de origem, enquanto o segundo tradutor é bem versado na poesia da língua para a qual o poema está sendo traduzido. Dessa maneira, eles podem se complementar. Por exemplo, o poema Seleções de Therigatha escrito por Sumangalmata, foi traduzido por mim e Gabriel Rosenstock. O primeiro rascunho transcriado por mim do idioma pali ficou da seguinte maneira:

A woman set free at last, how free

how gloriously free I am from drudgery

of kitchen, harsh hunger pangs

from the sound of empty pots,

also free from that whimsical man

the spinner of yarns

I have finally found my peace

lust and hatred have gone

I rest under the shade of sprawling trees

and cherish my happiness.

 

Gabriel sugeriu as seguintes mudanças:

 

A woman set free at last, how free

how gloriously free I am from drudgery

of kitchen, harsh hunger pangs

from the sound of empty pots,                delete

also free from that whimsical man         delete

the spinner of yarns                                   delete

I have finally found my peace                  peace at last!

lust and hatred have gone

I rest under the shade of sprawling trees

and cherish my happiness.

 

E a versão final ficou da seguinte maneira:

A woman set free at last, how free

how gloriously free I am from drudgery

of kitchen, harsh hunger pangs

the sound of empty pots,

free from that whimsical man

the spinner of yarns

peace at last

lust and hatred have gone

I rest under the shade of sprawling trees

and cherish happiness.

 

Entrevista traduzida por Carla Meireles Soares.

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Fabiana Ceyhan

Jornalista por formação, Professora de Inglês (TEFL, Teaching English as a Foreigner Language). Estudou Media Studies na Goldsmiths University Of London e tem vasta experiência como Jornalista da área internacional, tradutora e professora de Inglês. Poliglota, já acompanhou a visita de vários presidentes estrangeiros ao Brasil. Morou e trabalhou 15 anos fora do país.