Biden “mudou estilo” na relação com o Brasil, diz embaixador nos EUA

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Em entrevista à DW Brasil, Nestor Forster, representante do Brasil em Washington, critica dossiê entregue por ONGs ao presidente americano e diz que países discutem projetos para combater desmatamento na Amazônia.Menos de dois meses após a posse de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos, a embaixada do Brasil em Washington, comandada por Nestor Forster, identificou uma mudança de “estilo” na relação com Brasília. Há mais preocupação com a proteção do meio ambiente, engajamento conjunto em organismos multilaterais e aproximação diplomática conduzida pelo departamento do Estado, em vez de pela Casa Branca.

Em entrevista à DW Brasil, Forster afirma que os dois países vêm conversando sobre iniciativas para reduzir o desmatamento da Amazônia e estimular o potencial da bioeconomia na região, além da participação na próxima conferência do clima, em novembro, na cidade escocesa de Glasgow.

Em sua campanha, Biden prometeu colocar pressão para que o Brasil protegesse o meio ambiente e a floresta amazônica, após recordes de desmatamento e de queimadas e de iniciativas do governo Bolsonaro que reduziram a capacidade de fiscalização e punição de crimes ambientais.

No início de fevereiro, acadêmicos e ativistas de ONGs entregaram um dossiê à Casa Branca pedindo que os EUA suspendessem a importação de produtos que poderiam ser ligados ao desmatamento e retirasse seu apoio à entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) por conta de violações à proteção ambiental e aos direitos humanos. Forster afirma que a iniciativa foi uma “tentativa de fazer uma não agenda”, mas se diz satisfeito com a resposta da Casa Branca, que disse querer fortalecer os laços com o Brasil.

Forster, que acompanhou o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, em uma visita a Ivanka Trump na Casa Branca em 4 de janeiro e em uma reunião com empresários na embaixada em 5 de janeiro, um dia antes da invasão do Capitólio, diz desconhecer se o parlamentar participou de uma reunião com apoiadores de Trump, no dia 5, que teria discutido a invasão ao Congresso americano. Na última segunda-feira (08/03), o senador Jaques Wagner (PT-BA) apresentou um requerimento cobrando do Itamaraty esclarecimentos sobre a viagem do deputado a Washington e de sua eventual ligação com essa reunião, levantada pelo jornalista americano Seth Abramson, do site Proof.

DW Brasil: Um mês e meio após a posse de Biden, o senhor percebeu alguma mudança na relação do governo americano com o Brasil?

Nestor Forster: A mudança que se nota é de estilo, de ênfase, mas a relação continua sobre um leito mais profundo que une o Brasil e os Estados Unidos. O que mudou? O governo Biden veio com uma agenda muito firme na área de meio ambiente e mudança do clima.

Durante a campanha eleitoral, Biden disse que, se eleito, organizaria uma iniciativa internacional para transferir recursos ao Brasil em troca de preservação da Amazônia. A embaixada já detectou alguma movimentação do governo americano nesse sentido?

A movimentação foi iniciada por nós. Tivemos contatos do ministro das Relações Exteriores [Ernesto Araújo] com o secretário de Estado Antony Blinken e contatos aqui com o enviado especial para a mudança do clima, o ex-secretário John Kerry.

Esses temas são complexos e é difícil encapsulá-los numa fórmula que se apresenta na campanha eleitoral. Estamos discutindo uma agenda concreta sobre o que o Brasil e os Estados Unidos podem fazer juntos, tanto no plano bilateral, para combater desmatamento na Amazônia, com projetos de cooperação para a bioeconomia, como no plano multilateral, em preparação para a conferência [do clima] de novembro, em Glasgow, sobre o Acordo de Paris.

Em fevereiro, mais de cem acadêmicos e ativistas de ONGs entregaram um dossiê ao governo Biden pedindo que os EUA suspendam a importação de produtos que poderiam ser ligados ao desmatamento da Amazônia e retire seu apoio à entrada do Brasil na OCDE, entre outros temas, por conta de violações à proteção ambiental e aos direitos humanos e riscos à democracia no Brasil. Como o senhor avaliou essa iniciativa?

É normal que, numa democracia, todas as correntes políticas se manifestem, e ativistas de qualquer área podem dizer o que quiserem. Foi uma tentativa de fazer uma não agenda. Isso não tem base em um trabalho sério, profissional, na relação entre dois países. O importante é a reação da Casa Branca, que foi ponderada e realista em relação ao tal dossiê.

Notou mais alguma mudança na nova gestão americana?

Biden tem enfatizado a importância de os Estados Unidos buscarem alianças e atuar nas organizações internacionais, o que difere da administração anterior. Também, no passado, houve concentração da formulação da política externa americana na Casa Branca, às vezes mais do que no próprio departamento de Estado. A nova administração pretende devolver [isso] ao departamento de Estado e valorizar o papel da diplomacia profissional.

Biden não era o candidato preferido de Bolsonaro, que defendia abertamente a reeleição de Trump. Como minimizar o efeito nas relações bilaterais dessa escolha feita pelo presidente brasileiro?

A campanha eleitoral ficou para trás, estamos engajados com o novo governo daqui em todos os níveis. As pessoas ficaram muito presas na questão recente da amizade entre os chefes de Estado. Essa amizade ajuda, pode acelerar a agenda, mas não define a agenda. Os interesses concretos vão além, têm raízes muito profundas.

O governo Bolsonaro assinou alguns acordos bilaterais com o governo americano. Um para desenvolvimento conjunto de produtos de defesa, em março de 2020, e três sobre comércio, boas práticas regulatórias e anticorrupção, em outubro de 2020. Esses acordos já tiveram algum resultado prático?

O primeiro acordo, de pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação de produtos na área de defesa, os Estados Unidos só têm com 14 países do mundo, o Brasil é o primeiro na América Latina. O projeto foi encaminhado para o Congresso Nacional e está sendo avaliado pela Comissão de Relações Exteriores, esperamos que nos próximos meses esteja aprovado e possa entrar em vigor. Enquanto não entra em vigor, o establishment de defesa dos dois países está explorando qual será a agenda de cooperação que será implementada.

Com relação aos acordos de comércio, eles responderam a uma demanda do setor privado, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, por uma maior aproximação comercial. É difícil entender por que as duas maiores economias das Américas não têm um acordo mais amplo de comércio. Esses acordos foram encaminhados para apreciação do Congresso no Brasil. Do lado americano isso não é necessário, estão prontos para entrar em vigor. Precisamos fazer a nossa parte com a aprovação pelo parlamento. Uma vez aprovados, trarão benefícios em termos de redução de custos de fazer negócios no Brasil e vão pavimentando o caminho para um acordo mais abrangente de comércio.

O saldo comercial brasileiro com os EUA em 2020 foi o pior em seis anos, com déficit de 2,7 bilhões de dólares. Na última década inteira, com exceção de 2017, o saldo foi negativo para o Brasil. O que ocorreu?

Esse resultado em si não quer dizer muita coisa, a gente tem que ver o quadro mais amplo da relação bilateral e trazer também o componente de investimento. Os Estados Unidos continuam sendo o maior destino para as nossas exportações de produtos industrializados e de maior valor agregado, e continua sendo o maior investidor direto estrangeiro no Brasil. Em 2019, o estoque de investimento americano chegou a 145 bilhões de dólares no Brasil.

Durante o governo Trump, alguns pesquisadores afirmavam que a relação entre Brasil e EUA era de “alinhamento automático”, algo inédito na história do Itamaraty. O governo Bolsonaro fez diversas concessões aos EUA sem contrapartidas claras, como a desistência de indicar um brasileiro à presidência do BID, ter zerado o imposto de importação sobre uma cota do etanol americano, aceitar a sobretaxa americana ao aço brasileiro e isentar os americanos de vistos para vir ao Brasil. Do lado brasileiro, o estilo adotado nas relações bilaterais também mudou?

Não acho que essa seja uma boa premissa. Desde o primeiro momento, critiquei a ideia de que houvesse um alinhamento automático, pois não é possível que um país do tamanho do Brasil se alinhe automaticamente com quem quer que seja.

Com relação ao BID, desde o primeiro momento em que se colocou a questão da sucessão o Brasil sempre disse que estava interessado não em cargos, mas em projeto, que é representado pelo candidato que o Brasil apoiou e foi vitorioso [o americano Mauricio Claver-Carone].

Na questão do etanol, a isenção foi temporária, durou dois meses, para permitir uma negociação, que não deu frutos. Hoje os dois países estão com tarifa de 20% para o etanol. A sobretaxa sobre exportações de siderúrgicas é um assunto sério, e estamos colocando toda a pressão para que isso seja removido, mas é uma decisão unilateral do governo americano.

A eliminação do visto não foi algo em atendimento a uma demanda dos Estados Unidos, mas ao setor de turismo brasileiro. E a isenção não foi dada somente para os Estados Unidos, mas também para Canadá, Japão e Austrália. Nos primeiros seis meses, o turismo desses países no Brasil cresceu 30%, sobretudo dos Estados Unidos.

O Brasil foi designado como aliado preferencial extra-Otan, e os Estados Unidos apoiaram o ingresso do Brasil na OCDE. E não falamos de pandemia, os americanos deram uma colaboração imensa nessa área quando faltavam respiradores, fizeram uma doação de mil unidades para o Brasil.

Em relação ao etanol, o próprio setor agrícola brasileiro, representado pela bancada ruralista no Congresso, se opôs à isenção do imposto de importação ao produto americano.

Isso foi uma decisão de governo, não conheço os detalhes da parte parlamentar. Foi para abrir uma oportunidade de negociação, que pareceu acertada naquele momento. Houve demanda, do lado brasileiro, de que se buscasse não só a liberalização do setor de etanol, como estava sendo reclamado pelos americanos, mas que se ampliasse para zerar a tarifa do milho e do açúcar. Mas não avançou.

Um dia antes da invasão ao Capitólio, ocorrida em 6 de janeiro, houve uma reunião no Trump International Hotel, em Washington, com apoiadores próximos de Trump que teriam discutido a invasão do Congresso. Nesse mesmo dia, o deputado Eduardo Bolsonaro, estava na cidade e se encontrou com um dos aliados de Trump que teria incentivado a invasão, o empresário Michael Lindell. O senhor tem informações sobre a participação do deputado nessa reunião no hotel de Trump?

Não tenho nenhuma informação. Na embaixada, a gente trabalha com a agenda do embaixador. Não tenho conhecimento de nenhuma outra agenda do deputado Eduardo Bolsonaro, que não seja a que eu o acompanhei na segunda-feira [04/01] na Casa Branca, quando visitamos a senhora Ivanka Trump, e uma reunião na terça [05/01] na embaixada com ele e empresários.

Em evento realizado no dia 5 de março pelo think tank americano Council of the Americas, o ministro Ernesto Araújo disse que o Brasil queria trabalhar com os EUA para “livrar a América Latina do narcossocialismo”. O senhor poderia detalhar qual é o objetivo do Itamaraty nessa linha de política externa com os americanos?

O que o ministro falou foi um pouco mais complicado do que essa afirmação. Ele lembrou da questão de apoiar uma transição democrática na Venezuela promovida pelos próprios venezuelanos, por meio de eleições livres e justas. Não é novidade que um dos suportes importantes da ditadura do Nicolás Maduro na Venezuela é apoiada no narcotráfico.

Fonte: Terra.com