Leila Bijos
Sene Sonco[1]
A sociedade internacional europeia do século XIX estabeleceu os elementos derivados de princípios e práticas específicos de política internacional, com uma densa trama de interações entre comunidades e Estados, que se comportavam segundo regras e valores específicos. Uma sociedade internacional que continuamente incluía novos adeptos em sua teia de poder, contaminando as estruturas internas e as relações entre Estados com normas jurídicas, modos de viver e de pensar, regras de como produzir e de comerciar. Tratava-se de uma dimensão universal, cimentada pela cultura comum dos europeus e à luz do impacto provocado por seu encontro com o resto do mundo, denominado Concerto Europeu. O centro do poder europeu configurou-se através de uma rede de interesses econômicos, políticos e estratégicos, que incluiu a partilha da África.
Ressalte-se o valor estratégico do Egito, em relação ao caminho marítimo para a Índia, o valor econômico da África do Sul após 1870 e a descoberta de diamantes e de ouro. Implantou-se o imperialismo do comércio livre na África, através da difusão do tráfico de escravos, rotas expansionistas com mais de 15 mil expedições negreiras no século XVIII, com a participação de ingleses, portugueses e franceses, totalizando oito milhões de escravos em troca de bugigangas, armas, têxteis e de algumas plantas como mandioca, milho e batata doce. Localidades longínquas foram conquistadas como Costa do Marfim, Gabão, Guiné, Ilhas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, confinadas em regimes sociopolíticos arcaicos, que não poderiam reagir à dominação europeia sem passar por radicais transformações internas, com independência e soberania.
As antigas colônias permaneceram como “os parentes pobres”, marginais, imersas em tensões, conflitos sociais e políticos, corrupção e miséria, como é o caso da República da Guiné Conacri. Embora seja o maior exportador mundial de bauxita e tenha significativas reservas de minério de ferro, o país é um dos mais pobres do continente.
O sonho de paz, segurança e desenvolvimento econômico aflorou em cada cidadão, com a realização da primeira eleição presidencial democrática em Guiné desde a sua independência da França, em 1958. O presidente da República da Guiné Conacri, Alpha Condé, foi, em 2010, o primeiro presidente eleito de forma democrática. Em 2015, foi reeleito para o segundo mandato e, em outubro de 2020, para o terceiro mandato, em eleições controversas, com 59,5% do escrutínio considerado inconstitucional.
A não aceitação popular do resultado do último sufrágio eleitoral, eclodiu em violência nas ruas, com dezenas de mortos e detenção de muitos opositores do Governo, antes e depois da chamada às urnas. No presente, os tumultos se intensificam no país, comandados pelo grupo das Forças Especiais, criado pelo próprio presidente da República da Guiné, para eventual ataque terrorista na região. Esse grupo militar é liderado pelo Coronel Mamady Doumbouya, uma personalidade até então desconhecida, despontando como o novo homem forte da Guiné Conacri. Em seu currículo, consta que esse experiente militar recebeu treinamento em Israel, Senegal, Libéria e França. Antigo membro da Legião Francesa, o Coronel Mamady Doumbouya participou de várias missões no Afeganistão, Costa do Marfim, Djibuti e República Centro-Africana. Em 2018, Mamady Doumbouya foi destacado pelo Ministério da Defesa para criar um grupo de Forças Especiais no Exército Guineense.
No domingo, 05 de setembro de 2021, o centro da capital Conacri, foi palco de um tiroteio numa zona próxima ao palácio presidencial. Algumas horas depois, o coronel Mamady Doumbouya enviou um vídeo, registrado por telefone, à France Press, assim se pronunciando: “Após determos o Presidente, que está conosco, decidimos dissolver a Constituição, as instituições e também decidimos dissolver o Governo.” Além disso, informou o militar, “decidimos pelo fechamento das fronteiras terrestres e aéreas”.
O cientista político Ibrahima Kane, da Open Society Foundation, em entrevista à DW, salientou que todos os cidadãos guineenses sabem que o país atravessa um momento de grande instabilidade política, há mais de dois anos, e atingiu seu ápice em outubro de 2020, durante o processo eleitoral, cujo epicentro foi o referendo para uma nova constituição, que o próprio presidente tinha elaborado. Na prática, enquanto a Carta Magna guineense estabelecia o limite de dois mandatos para a reeleição presidencial, a reforma constitucional proposta pelo próprio Condé permitia-lhe candidatar-se além desse limite. O principal líder da oposição, Cellou Dallein Diallo, recusou-se a aceitar essa proposta de reforma constitucional, o que gerou protestos da grande maioria dos cidadãos.
Com cerca de 13 milhões de habitantes e apesar de seus muitos recursos minerais como bauxita e ferro, de recursos naturais, a Guiné continua sendo um dos países mais pobres do mundo. A independência da França em 1958, não lhe proporcionou uma rica transição do colonialismo, e conheceu uma sucessão de ditaduras e golpes de Estado que pareciam ter terminado com a chegada ao poder do histórico e veterano líder da oposição Alpha Condé, nas suas primeiras eleições livres, realizadas em 2010.
O otimismo com a chegada da democracia à Guiné traduziu-se em anos de crescimento econômico sustentável, com porcentagem de até 7% ao ano, graças a um revigorante clima de negócios e à diversificação de investimentos estrangeiros. No entanto, esses números não se traduziram em melhorias na qualidade de vida da maior parte da população: o percentual de pessoas abaixo da linha da pobreza continua a rondar os 50%. A crise econômica, derivada da epidemia ebola, entre 2014 e 2016, foi drasticamente agravada com o impacto da pandemia de Covid-19.
Ibrahima Kane sustenta que não ficou surpreso com o golpe contra o Presidente Alpha Condé, acrescentando que “a Guiné estava em crise permanente. Estava claro que algum dia alguém tentaria consertar as coisas”. Essa tentativa partiu dos oficiais das forças especiais, que anunciaram, no final da noite de domingo, 5 de setembro de 2021, o recolher obrigatório em todo o país, “até segunda ordem”.
Num comunicado apresentado na televisão nacional, o coronel e líder das forças especiais, Mamady Doumbouya, garantiu que a integridade física e moral do presidente não está ameaçada. Convocando os Ministros cessantes e os antigos presidentes de instituições para uma reunião, Mamady Doumbouya deixou claro que não atender a essa convocação seria entendido como uma rebelião contra o Comitê Nacional de Agrupamento e Desenvolvimento. Além disso, objetivando a normalidade sociopolítica, o líder prometeu iniciar uma consulta nacional sobre uma transição inclusiva e pacífica, embora não fosse especificada a duração dessa consulta. Voltando-se para a comunidade internacional, Doumbouya transmitiu uma mensagem aos parceiros investidores estrangeiros, segundo a qual os novos líderes da Guiné Conacri iriam manter os seus compromissos, e pediu às empresas minerais que continuassem as suas atividades neste país, com a produção de bauxita e minério de ferro.
A Comunidade Econômica de Estados da África Ocidental (CEDEAO) manifestou preocupação com a situação política do país e exigiu a libertação imediata do Presidente. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres reagiu aos acontecimentos e condenou “qualquer tomada de poder” na Guiné Conacri pelas forças armadas, afirmando que está acompanhando a situação no país “de muito perto”. O presidente da União Africana (UA), Felix Tshisekedi, e o presidente da Comissão da UA, Musa Faki Mahamat, condenaram qualquer coup d´État, ou tomada de poder pela força e exigiram a libertação “imediata” do presidente, em declaração conjunta, em que solicitaram uma reunião de emergência da organização. A organização Pan-africana convocou uma reunião urgente para examinar a situação na Guiné e tomar as medidas apropriadas. A essas vozes, juntaram-se os EUA e a França, invocando o regresso à ordem constitucional.
A situação política na Guiné Conacri, as tentativas de Condé em permanecer no poder, o estabelecimento de um regime que atormenta os oponentes e as vozes críticas de ONGs de direitos humanos, contribuem para mergulhar o país na instabilidade sociopolítica. A conexão entre situação econômica e turbulência política explica o porquê de a Guiné encabeçar a lista de emigração irregular para a Europa, como aconteceu em 2018, e crescentes dificuldades na superação da miséria da maior parte de sua população.
[1] Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba.