Como você considera hoje, a mulher na sociedade portuguesa, em relação aos direitos, salários e qualidade de vida?
A evolução do papel e dos direitos da mulheres na sociedade portuguesa foi enorme na últimas quatro décadas. Recorde-se que não há muito tempo, na década de setenta, muitas profissões estavam ainda vedadas às mulheres portuguesas, ou que necessitavam de autorização para viajar do pai ou do marido. Essa realidade, que parece hoje tão distante, foi vivida pela minha avó e pela minha mãe. A dificuldade em aceitar este tipo de restrições hoje em dia é, por si só, prova do muito que, desde então, mudou na sociedade portuguesa. Mas é uma mudança que ainda continua a operar-se na minha geração. Eu própria fiz parte de uma primeira geração de mulheres oficiais da Marinha Portuguesa.
É assim, com satisfação, que vejo que aos poucos, mas de forma consistente, as mulheres vão chegando a todas as profissões. Mas uma coisa é assegurar o acesso à profissão. Outra é garantir a igualdade de oportunidades na progressão na carreira. São duas vertentes distintas e seguem a velocidades diferentes.
A Constituição Portuguesa proíbe qualquer tratamento desigual em função do género. As mulheres têm, à luz do nosso quadro legal, plenos direitos políticos, económicos, sociais, etc. Têm acesso à educação e à saúde exatamente nos mesmo termos que os homens. Portanto, se falarmos no plano formal dos direitos, essa igualdade está refletida e é assegurada nos textos legais fundamentais. Mas a mudança não se concretiza apenas por decreto. Dou um exemplo: não basta garantir o acesso a qualquer profissão se depois aceitarmos conviver com a desigualdade nos salários ou na divisão do trabalho doméstico. Note-se que, no setor público está garantida a estrita igualdade salarial. Para as mesmas funções, homens e mulheres recebem o mesmo. Está tabelado. Mas no setor privado, isso não acontece. O mérito não está em questão. Temos, atualmente, a geração de mulheres mais qualificada de sempre a chegar ao mundo laboral. Mas continuam a receber menos que os seus colegas homens e a ocupar menos lugares de topo. Ou seja, a mudança tem de ser conquistada na sociedade e pela sociedade. Tem de ser a própria sociedade a rejeitar essa discriminação.
E aqui passo a responder à última parte da sua pergunta, sobre a qualidade de vida da mulher. Que está relacionada, enfim, com o que a sociedade espera dela. Ela tem de ser dona de casa, mãe, esposa, profissional, tudo ao mesmo tempo e com igual nível de exigência. Os dias teriam de ser muito longos para alcançar esse ideal de perfeição. Com otimismo, porém, vou assistindo às mudanças nas gerações mais novas. Elas estão a conquistar o seu espaço e já não pactuam com preconceitos que as restringem ou que as penalizam pelo facto de serem mulheres. Também os homens estão a fazer parte dessa mudança desempenhando um papel crucial nessa transformação de mentalidade. Partilham cada vez mais as tarefas em casa e os cuidados com os filhos. Homens e mulheres reconhecendo-se e relacionando-se como iguais. Afinal, a luta pela igualdade de género não é uma luta apenas das mulheres, é uma luta também dos homens.
A legislação tem ajudado. Portugal contribui para a discussão e definição de políticas de igualdade de género ao nível da UE. Existe mesmo um esforço para ir mais além, ao aprovar leis que reforçam os direitos das mulheres, sem esquecer o papel dos homens para a concretização plena e efetiva da igualdade de direitos. Podia dar muitos exemplos mas refiro apenas um: de há alguns anos para cá, existe uma divisão mais justa das licenças de parentalidade entre a mãe e o pai.
Em suma, se olharmos para a vida que as nossas avós e mães tiveram, e as compararmos com a vida que nós temos, a diferença é, efetivamente, abissal. A evolução foi grande e muito rápida. Mas persistem traços de desigualdade a vários níveis. O trabalho pela igualdade de género não está terminado.
Há muitas mulheres na vida publica e na diplomacia?
A perceção que tenho é que nunca houve tantas mulheres na vida pública. Mas ainda são poucas se compararmos com os números globais e variam de setor para setor. Nas carreiras gerais dos serviços públicos o número de mulheres é já superior ao dos homens. Estão bem representadas nas chefias intermédias, não tanto nos lugares de topo. Nas carreiras especiais a realidade é, porém, um pouco diferente. É verdade que as mulheres chegaram a estas carreiras mais tarde. Mas tal facto não pode, por si só, explicar a lentidão com que as mulheres vão ascendendo nestes serviços especiais.
Talvez a diplomacia, onde as mulheres representam, sensivelmente, um terço do universo dos diplomatas, seja um desses exemplos. O acesso das mulheres à carreira diplomática apenas foi permitido em 1974 (o primeiro concurso aberto a mulheres ocorreu em novembro desse ano). Quase cinquenta anos depois, eventualmente o número de mulheres na diplomacia devesse ser superior. A verdade é que nos primeiros concursos a percentagem de mulheres admitidas foi bastante relevante, tendo mesmo chegado a 60% no início deste século. Contudo, dez anos depois, essa tendência inverteu-se. Houve um trabalho digno de registo do Ministério dos Negócios Estrangeiros em alterar esse cenário, tendo-se mesmo procedido à revisão da estrutura das provas de acesso. Nos concursos subsequentes os resultados melhoraram, mas ainda não são, na minha opinião, os desejáveis. Não refletem a realidade que se vive nas universidades, onde a maioria são, hoje, mulheres.
Outro aspeto relaciona-se com a chefia de missões. A maior parte das missões diplomáticas e dos postos consulares é assumida por homens. Já nos lugares de chefia intermédias nos serviços internos do Ministério dos Negócios Estrangeiros estamos mais próximos da paridade.
Por fim, um comentário mais pessoal, porque se trata, afinal de uma realidade que conheço. O percurso das nossas diplomatas tem sido inspirador. Provam o seu valor nos excelentes resultados que têm alcançado. Muitas vezes longe dos holofotes, representam com dignidade e muito mérito o nosso país. Olho em volta e vejo que esta dedicação não é muito diferente da realidade brasileira.
Como venho referindo, é um processo. Estamos a ir no bom caminho. Precisamos seguir no bom caminho.
No mundo em geral quais as conquistas que você acredita que as mulheres ainda possam alcançar?
Nos países que respeitam o Estado de Direito e os valores democráticos, tem havido uma atenção cada vez maior na definição de políticas e na aprovação de medidas legais que garantam a igualdade de género. Nesses países, a sociedade está mais desperta para a urgência de assegurar a igualdade de oportunidades para mulheres e homens. Apesar de a indispensável mudança cultural para ultrapassar definitivamente os estereótipos sobre o papel dos diferentes géneros ainda não estar plenamente alcançada. É um processo que temos de continuar a acompanhar atentamente se queremos garantir que não haja retrocessos.
Mas tenho aqui de referir, também, os países onde não estão garantidos os valores democráticos e o respeito pelos direitos humanos. Países marcados pela pobreza, pelo conflito, por crises sociais e económicas. Nesses contextos, a luta pelos direitos das mulheres, entre outros direitos, aliás, é bem mais árdua. Em muitos casos, é mais que uma luta pela igualdade, é uma luta pela dignidade, pela sobrevivência, até. Tragicamente, não são poucos os exemplos. Basta olhar para o mapa-mundo para encontrar vários. E a pandemia veio agudizar ainda mais a situação de muitas meninas e mulheres. As conquistas, para estas meninas e mulheres, ainda estão quase todas por alcançar. Compete-nos a todos, coletivamente, contribuir para que esta batalha não seja perdida. Quebrar o ciclo de pensamento que defende que a harmonia da sociedade apenas se obtém com a dominância de um género sobre os outros.
Mas tenho esperança. O tempo para a mudança pode ser longo, mas acredito que é incontornável. E a história das mulheres é uma história de resiliência.
Mensagem para as mulheres brasileiras em relação ao “Dia Internacional da Mulher “
Que não abdiquem dos seus direitos. Que não aceitem um não quando este seja injusto ou baseado no preconceito. Que continuem a ser um motor de mudança. Uma mudança real, sólida, duradoura. Que não aceitem concessões nos seus sonhos. E que sonhem alto e com ambição.
Nota Biográfica da Ministra Conselheira da Embaixada de Portugal em Brasília
Sandra Cristina Velhinho de Magalhães Maltez
Ministra Conselheira na Embaixada de Portugal em Brasília desde julho de 2019
Licenciada em Direito, Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa
Pós-graduação em Ciências Jurídico-Administrativas, Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa.
Aprovada no concurso de admissão aos lugares de adido de embaixada aberto em 31 de dezembro de 1998.
Desempenhou funções:
Na Comissão Internacional de Limites Luso-Espanhola e Comissão de Aplicação e Desenvolvimento da Convenção sobre a Cooperação para a Protecção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas (de 1999 a 2002);
No Gabinete do Diretor-Geral de Política Externa (de 2002 a 2006);
Destacada no Gabinete do Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas (em 2006);
Na Delegação Portuguesa junto da NATO (de final de 2006 a 2011);
Na Embaixada de Portugal em Bogotá (de 2011 a 2015)
Na Casa Civil do Presidente da República (de 2015 a de 2016);
Diretora de Serviços de Cooperação para o desenvolvimento no Camões, Instituto para a Cooperação e Língua Portuguesa (de 2016 a de 2019).
Publicações
“O novo conceito estratégico da NATO – um contributo”, em conjunto com o Prof. Dr. Francisco Proença Garcia, Revista de Política Internacional e de Segurança da Universidade Lusíada, Lisboa, série I nr.º 3 (2010).
Condecorações
Oficial da Ordem do Infante D. Henrique (Alvará nr.º 17/2016, DR 2.ª série nr.º 41, de 29.02.16).