Artigo – CONFLITOS INTERNACIONAIS: AFEGANISTÃO – Por Leila Bijos

Do ponto de vista histórico, o fim da Guerra Fria foi como estopim para desencadear revoltas no Afeganistão (celeiro de terroristas e grupos rebeldes desde a ocupação da ex-URSS, na década de 80), após deposição de Mohammad Daoud, por um golpe comunista liderado pelos russos.  Com a invasão soviética, rebeldes islâmicos contaram com a ajuda internacional, iniciaram um forte treinamento em zonas tribais, inclusive no Paquistão, com armamentos pesados e mísseis antiaéreos. Esse treinamento islâmico, em nome da jihad (a guerra santa islâmica), deu origem a uma das mais cruéis e obstinadas guerrilhas da atualidade, a Al Qaeda, liderada por Osama Bin Laden, saudita e dissidente por considerar seu país de origem desrespeitoso às leis do islã. Os eventos trágicos de 11 de setembro de 2001 provocaram o governo norte-americano de George W. Bush a liderar a “guerra contra o terror” contra a guerrilha Al Qaeda, que assumiu o atentado. Os aliados invadiram o Afeganistão em 2001, conquistaram a capital e mais duas cidades principais (Kandahar e Mazar-e-Sharif), afugentando o mulá Omar. No fim do ano de 2001, os EUA e o ex-rei afegão escolheram Hardi Kazar para governar o país, sugerindo a construção de um novo regime democrático, contrário às determinações do Talibã.

Vinte anos depois, em 2021, o que se vê são imagens do caos humanitário e da deterioração da situação das mulheres após a rápida tomada de Cabul pelo Talibã, o que suscita preocupações na comunidade internacional, que busca opções diante dos apelos desesperados das mulheres afegãs. ONGs de direitos das mulheres nos Estados Unidos recentemente convocaram uma operação de manutenção da paz das Nações Unidas no Afeganistão. Operações de manutenção de paz devem ser implementadas antes que o país seja dominado por forças rebeldes, visando a beneficiar civis e, particularmente as mulheres. As operações de manutenção da paz da ONU funcionam melhor do que as contra insurgências ocidentais para manter uma paz durável, proteger cidadãos e construir uma cultura de direitos humanos.

Os esforços de manutenção da paz no Afeganistão falharam ao não intermediar e impor um acordo que levasse ao estabelecimento de um novo governo inclusivo a tempo, que poderia ter sido realizado em conjunto com uma missão de manutenção da paz.

Apesar do contexto estratégico em evolução, há três razões para se pensar que as condições certas para uma missão de manutenção de paz da ONU ainda poderiam surgir. Em primeiro lugar, não está claro se o Talibã derrotou os militares afegãos ou se de fato o governo e os militares afegãos simplesmente recuaram para se reagrupar. Os militares afegãos agiram rápido para remover seus ativos mais valiosos: pilotos e caças, por exemplo, para os países vizinhos. Ex-líderes do governo mobilizaram uma oposição política do exílio, e o ex-vice-presidente Amrullah Saleh se declarou “presidente interino” do Afeganistão após a fuga do presidente Ashraf Ghani do país e mobiliza uma base de resistência no Vale Panjshir. Uma guerra civil se avizinha do país, sem o efeito estabilizador da presença dos EUA. Quando ocuparam o poder pela última vez, o Talibã se opôs a um conglomerado de grupos étnicos que se opunham ao seu governo, conhecido nos EUA como Aliança do Norte. O grupo de Saleh está modelando a si mesmo neste movimento anterior, embora seja provavelmente apenas o primeiro de vários grupos de oposição que surgirão. Percebe-se que o próprio Talibã não é homogêneo ou monolítico, existem rachaduras e diferenças entre as capitais provinciais, entre as bases do Talibã e sua liderança internacional.

Será possível uma insurgência anti-Talibã coesa instituída por altos líderes do ex-governo afegão para reiniciar as negociações de paz com o Talibã sobre a forma de um governo interino? O ex-presidente Hamid Karzai, o chefe do Conselho de Reconciliação Nacional Abdullah Abdullah e o ex-primeiro-ministro Gulbuddin Hekmatyar se reagruparam no Catar na forma de um chamado Conselho de Coordenação com o objetivo de criar um governo de coalizão inclusivo. O Talibã já se reuniu com eles para iniciar negociações que podem ou não levar a tal acordo, dependendo dos acontecimentos no Afeganistão. Augura-se a criação de um governo provisório, que se bem sucedido daria abertura para a ONU se reposicionar e fornecer garantias de segurança, expandir sua Missão de Assistência no Afeganistão (UNAMA), e proteger os corredores humanitários. Devido aos ataques no complexo principal da ONU em Herat, um guarda da polícia afegã foi morto e outros oficiais feridos, o que demandou a evacuação de funcionários para Almaty, Cazaquistão, para sua própria segurança. Uma presença futura ou reforçada da ONU em curto prazo exigirá uma força mais robusta, capaz de se defender não apenas a si mesma, mas também aos trabalhadores humanitários e civis, se necessário.

A renovação da insurgência ou guerra civil apresenta um tipo diferente de ameaça aos civis do que o regime repressivo que eles já temem sob a autoridade do Talibã, e no qual muitos atores internacionais estão agora concentrados. Em virtude de um conflito contínuo, em oposição a uma vitória consolidada do Talibã, apresenta-se uma oportunidade para a comunidade internacional direcionar suas ações com foco na diplomacia. Uma operação de manutenção da paz funcionaria como um mecanismo para extrair os EUA do Afeganistão sem deixar para trás um vácuo de poder. Ações efetivas apresentam um Conselho de Segurança da ONU ao estilo da Bósnia, que autorizou a intervenção do Capítulo VII para conter o cerco do Talibã contra áreas urbanas e trazer ambas as partes à mesa de paz, lançando as bases para uma força de manutenção da paz. A maioria das missões de paz da ONU são inseridas em guerras civis intratáveis ​​como um mecanismo para criar e manter cessar-fogo entre as partes em impasse. Do ponto de vista jurídico exige-se o consentimento de ambas as partes beligerantes, algo que pode funcionar quando há um impasse ou acordo de paz, mas que é mais difícil quando os vencedores de um estado recém-capturado têm pouco incentivo para ceder poder ou autoridade a estranhos. No momento, o Talibã tem o controle, a manutenção da paz pode ser considerada como uma terceira parte neutra para conter a violência potencial entre grupos armados e entre civis, proteger corredores humanitários, apoiar e fazer cumprir qualquer acordo de paz. Essas operações são mais bem-sucedidas do que fracassam, e pesquisas recentes do Mali mostram que, mesmo em casos onde as chances são contra o sucesso, os mantenedores da paz podem desempenhar um papel pacificador no nível de base e ajudar a evitar conflitos intercomunais.

As Nações Unidas e o Conselho de Segurança precisam agir rápido no processo de paz e segurança internacionais, estabelecer um mecanismo para intermediar as negociações de paz e garantir espaço para si mesmo à mesa em um acordo. Um acordo de paz intermediado pelas Nações Unidas seria muito preferível a um negociado pelos EUA ou uma parte interessada regional. Se escolher desempenhar um papel mais proativo, a Índia poderia usar sua posição como presidente rotativo do Conselho de Segurança para convocar uma reunião de emergência e pressionar por árbitros neutros de fora da região para ajudar a intermediar um acordo intra-afegão.

Em segundo lugar, pelo bem da paz e segurança internacionais, o Conselho de Segurança deve avaliar imediatamente os ingredientes logísticos necessários para uma missão de manutenção da paz supervisionar tal acordo. Insta ao secretário-geral da ONU António Guterres realizar uma avaliação estratégica para identificar todas as opções possíveis para o envolvimento da agência, apresentar recomendações ao conselho, e reafirmar o papel de liderança da agência.

O Talibã precisaria aceitar um papel da ONU em um acordo de paz para que isso acontecesse. A comunidade internacional poderia condicionar o reconhecimento diplomático e a ajuda futura a um papel da ONU na mediação de um acordo e no envio de uma missão de tamanho moderado para monitorá-lo, verificá-lo e aplicá-lo. Essa missão pode ajudar a manter a paz e garantir o fluxo de ajuda humanitária, protegendo assim os civis e estancando o fluxo de refugiados. EUA e Nações Unidas devem juntos pensar no futuro – e pensar na manutenção da paz como uma opção real, em vez de uma ideia radical. A liderança dos EUA torna-se fundamental, em face de seu papel no Conselho de Segurança, e a percepção de eles são os responsáveis ​​por esse problema. Uma operação de manutenção da paz apresenta ao presidente Joe Biden uma oportunidade de salvar sua imagem, apagar os erros do passado, diminuir a indignação internacional pela retirada das tropas militares e a frieza frente ao massacre de mulheres e crianças.

É preciso garantir o direito das mulheres, que durante a guerra civil de quatro anos violentos, foram mantidas em prisão domiciliar, sequestradas e violentadas sexualmente. As mulheres foram proibidas de trabalhar fora de suas casas, de sair de suas residências sem estarem acompanhadas por um membro de sua família do sexo masculino além de, quando o fizessem, deveriam estar vestidas com burca. Sob estas restrições, as mulheres foram privadas de educação formal. Algumas mulheres eram incapazes de deixar suas casas, porque elas não podiam pagar uma burca ou elas já não tinham quaisquer parentes do sexo masculino. Mulheres foram forçadas a ficar em casa e pintar as janelas para que ninguém pudesse ver de dentro para fora, durante o governo de cinco anos do Talibã (de 1996 a 2001). Mulheres brilhantes, que já tinham posições respeitáveis, foram forçadas a vaguear pelas ruas em suas burcas, venderem tudo o que possuíam ou mendigarem para sobreviver. Vários comandantes do Talibã e da Al Qaeda executaram uma rede de tráfico de seres humanos, raptando mulheres e vendendo-as para a prostituição forçada e escravidão no Afeganistão e no Paquistão.

Fonte: Observatório do Terceiro Setor. Foto: Flickr/ USAID Afghanistan, Google.com.

No governo de Hamid Karzai políticas mais relaxadas em torno dos direitos das mulheres foram adotadas e, em Cabul, mulheres podiam ser vistas dirigindo carros e se engajando em outras atividades que haviam sido proibidas para elas durante o regime anterior.

Preservar a paz significa evitar o uso da força, promover e consolidar o Estado de Direito e a Democracia.  

O desafio atual será o de romper com o totalitarismo enquanto forma de governo e dominação baseada no terror e na ideologia, promover a convivência pacífica, a proteção, a volta da democracia no Afeganistão, ancorada na amplitude da diplomacia e das negociações internacionais, espelhada na garantia do exercício efetivo dos direitos humanos universalmente reconhecidos.

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Leila Bijos

Pós-Doutora em Sociologia e Criminologia pela Saint Mary’s University, Halifax, Nova Scotia, Canadá. Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (CEPPAC/UnB). Professora Visitante do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais (PPGCPRI), Universidade Federal da Paraíba (2020). Coordenadora de Pesquisa do Centro de Estudos Estratégicos (CEEEx), Núcleo de Estudos Prospectivos (NEP), Ministério do Exército (2019-2020). Aigner-Rollet-Guest Professor at Karl-Franzens University of Graz, Áustria Centro Europeu de Formação e Investigação dos Direitos Humanos e Democracia, Uni-Graz (2018/2019). Pesquisadora Visitante no International Multiculturalism Centre, Baku, Azerbaijão (2018). Professora do Mestrado Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (2000-2017). Oficial de Programa do PNUD (1985-1999). Professora do Programa de Pós-Graduação em Propriedade Intelectual Transferência de Tecnologia para a Inovação – PROFNIT, Universidade de Brasília (UnB), CDT, Brasília, DF desde 2016.